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Canções para tantos finais felizes

  • Foto do escritor: Davi Furtado de Almeida
    Davi Furtado de Almeida
  • 28 de abr.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 6 de mai.

Por Davi de Almeida


Mesmo que se tente, é difícil dizer qual foi a última vez em que o filme assistido tinha, verdadeiramente, um final triste ou desesperançoso. Obviamente, a indústria cinematográfica nunca deixou de tratar de assuntos sérios ou retratar a realidade como ela é, mas, mesmo nesses casos, ao encerrar a obra, não há ao menos um ponto do que é visto que promove conforto ou compadecimento a quem vê? Se sim, é possível traçar duas conclusões óbvias: ou as pessoas tendem a procurar, naturalmente, conforto até nos momentos mais dolorosos, lidando assim com o sofrimento, ou a produção de cinema é construída a partir da perspectiva de que todo ou qualquer final deve ser, ao menos, um pouco feliz. Este texto e o filósofo francês Edgar Morin tendem a considerar mais a segunda hipótese tratada.


Importante contribuidor para as Teorias da Comunicação, Morin vê no cinema o meio pelo qual as classes populares podem ter seu imaginário sincretizado, ou seja, a partir de um processo de projeção e identificação com as obras, os indivíduos passam a “misturar” a sua realidade com o mundo ficcional enquanto “suprem” seus desejos, angústias e necessidades. Esse processo só ocorre quando o imaginário e o real estão em equilíbrio para que ambos possam se sustentar e, assim, é possível criar “personagens-modelo” altamente identificáveis, que balizam condutas a serem consideradas essenciais como o afeto, o amor e a felicidade. Nesse sentido, ao mesmo tempo que o cinema consegue suprir as necessidades das massas por meio de seus sincretismos, ele também é capaz de definir qual é essa felicidade e quando ela deve ser acionada. 

A busca pela felicidade, tão explorada por essa indústria em suas produções, define o que Morin e outros autores chamam de “Happy End”, “final feliz” em inglês,  um modelo que começa a ser altamente aplicado nos Estados Unidos da América em um momento extremamente delicado economicamente e politicamente, mas, ao mesmo tempo, altamente oportuno para a sua aplicação, “A grande depressão”. O imperialismo cultural norte-americano possibilitou que esse modo de produção de roteiro fosse fortemente disseminado pelo globo, de modo que toda a produção já estivesse contaminada por esses “finais felizes”, que, por sua vez, têm sua produção de sentido voltada para a alegria a partir de diferentes mecanismos.


Em sua obra, Edgar Morin destaca, em especial, as imagens como principais produtoras desse sentido. Contudo, neste texto, valorizamos o poder emotivo das músicas e trilhas sonoras que, às vezes até de modo escondido, podem produzir fortemente esse “happy end”. Entretanto, o que faz de uma canção e, consequentemente, desses encerramentos uma felicidade? Neste contexto, muitas são as influências sociais e culturais, mas, apesar disso, historicamente, a associação dos acordes maiores e menores de uma escala musical aos sentimentos, respectivamente, de alegria e tristeza, são um processo notável neste quesito de produção de sentido, ao menos no ocidente.

Tomemos como exemplo canções altamente comuns e identificáveis por grande parcela populacional. A Marcha Nupcial, presente na maioria dos casamentos, tem sua composição harmônica (uma combinação de notas musicais ou, de maneira simplificada, aquilo que é tocado) formada por notas que compõem acordes, quase exclusivamente, maiores, remetendo, nesse momento comumente associado ao amor, a realização, sucesso, conquista, alegria e felicidade, a esses sentimentos. Na contramão da primeira, é possível observar a Marcha Fúnebre, utilizada frequentemente em enterros e velórios, que é composta majoritariamente por notas que formam acordes menores, remetendo a negatividade, tristeza, desamor e desesperança desse momento.


Partindo desse pressuposto, por exemplo, Luiz Gonzaga, grande compositor e intérprete brasileiro, produziu dois grandes sucessos de sua carreira: “Asa Branca” e “Assum Preto”. A primeira, de 1947, revela as dificuldades e os descaminhos da vida no campo a partir de um olhar carinhoso e saudosista por parte do eu-lírico, como em: “Quando o verde dos teus olho/Se espalhar na plantação/Eu te asseguro, não chore não, viu?/Que eu voltarei, viu, meu coração?”. Nessa canção, o que se tem é uma harmonia quase exclusivamente formada por acordes em maior, reforçando uma positividade que surge até mesmo de momentos difíceis. Três anos depois, em 1950, Gonzaga lançou “Assum Preto”, uma canção que mantém a mesma métrica da primeira, mas transverte os acordes maiores em acordes menores, o que produz uma canção negativa e tristonha, corroborando para a sua lírica que trata de um pássaro que foi cegado e, portanto, canta de dor.    


Tendo todas essas perspectivas em vista, voltemos a atenção às trilhas sonoras das produções de cinema. As canções são cruciais para estabelecer a emoção e a conexão em toda a duração de um filme, fazendo-se presente até mesmo quando não era possível registrar as falas dos atores no cinema mudo. Contudo, quando se trata da produção de sentido de “finais felizes”, as músicas podem seguir a partir de dois grandes caminhos. O primeiro e mais notável é quando a trilha sonora reforça a imagem desenhada em tela, ou seja, uma base musical feliz para uma cena feliz. O segundo, e muito mais curioso e escondido do que o primeiro, trata-se de quando a trilha sonora contrasta com o que é visto no resto da produção ou em relação ao que ocorre na cena final, isto é, quando, mesmo em um final triste ou negativo, a trilha sonora se encerra em um acorde maior, produzindo um sentido, não necessariamente feliz, mas, ainda assim, de complacência e/ou conformação confortável.


Para exemplificar o primeiro caso, que didaticamente chamaremos de “Caso de Consonância”, tomemos como exemplo alguns dos filmes favoritos de um grupo de mulheres analisado no artigo “O happy end hollywoodiano e as suas relações com a configuração de felicidade para a ‘Classe Batalhadora’” de Guilherme Barbacovi Libardi e Janie Kiszewski Pacheco. O grupo de seis  mulheres analisado pelos autores tem de 23 a 37 anos, no qual o maior nível de escolaridade é o Ensino Médio completo. Os autores concluem que, para esse grupo, a conquista da felicidade está altamente ligada à conquista do amor e da estabilidade social e financeira. Tal perspectiva é refletida nas características das heroínas de suas histórias favoritas, como prevê Edgar Morin, personagens com quem o grupo amostral estabelece relações de troca, projeção e identificação. 


Nesse contexto, quatro dos seis filmes elencados têm seus finais associados ao reencontro de casais, casamentos e/ou estabelecimento de relacionamentos, práticas ligadas socialmente à felicidade. Tendo isso em vista, todos eles se encerram com trilhas com acordes em maior, ou têm o primeiro acorde das músicas que iniciam os créditos em maior, estabelecendo uma relação de consonância com a imagem do filme. É o caso de “Coincidências do Amor” (2010) – fá maior encerra o filme –, “A sogra” (2005) – fá maior inicia a canção “For once in my Life” de Stevie Wonder no último segundo da obra –, “Encontro de Amor” (2002) – fá maior inicia a canção “I’m coming Out” de Diana Ross –, e “Uma Linda Mulher” (1990) – lá maior inicia a canção “Pretty Woman” de Roy Orbison. 


Quanto ao segundo caso descrito acima, que aqui chamaremos de “Caso de Contraste”, tomaremos como exemplo filmes de nacionalidades e gêneros diversos que têm especificidades. Um dos filmes que também foram elencados pelas mulheres do grupo amostral é sucesso de bilheteria, “Marley & Eu” (2008), que se encerra com o protagonista enterrando seu cachorro, Marley, personagem que estabelece forte empatia com o público. Contudo, a trilha sonora melancólica da cena final se transforma, no último segundo, em um sol maior, produzindo um sentimento de compadecimento com a situação tristonha. Tal processo se repete em “Cinema Paradiso” (1988), no qual, enquanto o personagem principal chora rememorando de forma saudosista seu amigo que faleceu, a melancólica e emocionante “Love theme” de Ennio Morricone se encerra em um si bemol maior e é substituída nos créditos por uma versão animada e positiva de “Childhood and Manhood”, do mesmo autor, que se inicia no mesmo acorde com que a última termina.



 CENA DO FILME Cinema Paradiso (1988). Reprodução.
 CENA DO FILME Cinema Paradiso (1988). Reprodução.

O mesmo ocorre em “Aqui” (2025), que se encerra com a descoberta de que a personagem principal desenvolve  a doença de Alzheimer, lembrando-se de poucos detalhes da casa em que viveu. Contudo, a impressão final do filme é feliz, efeito de sentido produzido por uma trilha sonora apoteótica e crescente que se encerra em um si bemol maior. Por fim, outro exemplo curioso é o de “Jojo Rabbit” (2019), um filme que se passa no contexto da Segunda Guerra em que uma criança ariana, e completamente comprada pelo discurso hitlerista, descobre que sua mãe esconde uma adolescente judia em sua casa. Ao final do filme, a criança, já com sua mãe e parentes falecidos, e a adolescente sem família ou amigos restantes dançam ao som de “Heroes” de David Bowie, que se inicia em ré maior. Um momento que não só contrasta com todo o resto da produção cinematográfica, mas que só é possível a partir da música, que propicia o tom alegre do momento.


Em meio a tantos slogans como “Abra a felicidade” (Coca-Cola),“O que faz você feliz?” (Pão de Açúcar) ou "Siga Sorrindo" (Colgate), finais de filmes com suas notas em maior, que representam a alegria, a felicidade e a conquista a todo custo, é difícil dissociar a vida da felicidade. Uma busca desenfreada desse sentimento puro que é transformado em produto pelo capital. O resultado disso pode ser uma população que tem dificuldade em lidar com a tristeza ou negatividade, sentimentos comuns à vida cotidiana e sempre superados pelos finais espetaculosos e felizes de cinema. Em níveis extremos, mesmo que o final venha a ser previsivelmente feliz, existe um movimento estudado por especialistas que revelam que as pessoas preferem assistir a tramas que já conhecem, um processo que pode se tornar um “um exercício de relaxamento porque esses personagens estão perto de você", como afirma a psicóloga Tânia Percy Vasunia para Imperium Publication.


Lutar contra esse modus operandi pode ser extremamente desgastante e doloroso, mas entender um dos seus modos de atuação já é um grande avanço a partir das perspectivas de Edgar Morin. Não é necessário deixar de consumir produções repletas de happy end, principalmente quando elas podem ser uma grande válvula de escape para a vida moderna. Não seria a vida capitalista triste o suficiente? Necessário mesmo é saber que esses processos existem. Gonzaguinha, compositor brasileiro e filho de Luiz Gonzaga, afirma em sua canção de mesmo nome: “Não dá pra ser feliz”. Enquanto luta contra esses finais, o autor finaliza a gravação de sua música a partir de um efeito de fade out (quando a música “some” aos poucos). Imagino que, se tivesse que encerrar a canção de forma comum, talvez seu último acorde devesse ser maior.




 
 
 

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