Trilha sonora das “pessoas puras”
- Clara Oliveira
- 28 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de mai.

O ano era 2001. Enquanto o mundo saudava o novo milênio, Hou Hsiao-Hsien fez história dirigindo uma das aberturas mais memoráveis do cinema asiático. Na cena, vemos Vicky (interpretada por Shu Qi) andando em câmera lenta por um túnel em Taipei, Taiwan. Com o cabelo esvoaçante e a fotografia azulada refletindo as luzes vibrantes do país, ela percorre seu caminho exibindo expressões como alegria e também preocupação, praticamente conversando com a câmera, enquanto ouvimos a narração juntamente com o toque especial da cena: a música A Pure Person, composta por Lim Giong.
Logo nos primeiros segundos, a trilha sonora envolve o espectador em uma atmosfera hipnótica. Com sintetizadores e um ritmo eletrônico contido, a composição intriga todos os espectadores que assistem à obra, já que mescla batidas com letra quase como se o autor estivesse recitando um poema, e, de alguma forma, a música encaixa-se perfeitamente no contexto dos anos 2000 e reflete as promessas de modernidade do milênio. O que poderia soar deslocado em outro cenário, torna-se aqui um reflexo preciso da juventude urbana de Taiwan naquela época: ansiosa, flutuando entre a euforia tecnológica e a solidão das cidades.
A Pure Person (Uma pessoa pura - em tradução livre), como é intitulada a faixa, não funciona apenas como plano de fundo para a trama. A música de Lim Giong carrega uma função narrativa e sensorial indispensável para a abertura do filme, estabelecendo, antes de qualquer diálogo, o estado de espírito de sua protagonista e de toda uma juventude, especialmente taiwanesa, no início do século XXI. Nascido em 1964, Lim começou a carreira como cantor pop e rock no início dos anos 1990, mas logo se afastou do mercado musical local para mergulhar na música eletrônica experimental. Influenciado por gêneros como ambient, techno e trip-hop, ele desenvolveu um estilo próprio, misturando batidas eletrônicas minimalistas com elementos da cultura musical asiática, que encantou os diretores da chamada Nova Onda de Taiwan (1980 - 1990) e Segunda Nova Onda (1990 - 2010).
Esse movimento dialogava diretamente com o cenário musical de Taiwan da virada do milênio. Na época, o país passava por uma efervescência cultural marcada pela chegada massiva de influências ocidentais ao mesmo tempo em que buscava preservar suas tradições sonoras e estéticas. A questão política, que tanto envolve o Taiwan, também teve um peso importante nos significados que foram agregados a Millennium Mambo (2001). Depois de décadas sob a sombra da lei marcial, encerrada apenas em 1987, e com as primeiras eleições presidenciais diretas realizadas em 1996, Taiwan se via no início dos anos 2000 em um momento de afirmação democrática e intensa transformação social. A independência cultural e política ainda era (e continua sendo) motivo de tensão com a China Continental, o que tornava os debates sobre identidade e pertencimento ainda mais acalorados.
Ao mesmo tempo, as cidades, em especial a capital Taipei, passavam por um acelerado processo de modernização: arranha-céus, vias expressas, luzes de néon e centros comerciais redefiniam a paisagem urbana e a dinâmica social. Essa urbanização rápida, embora seja um sinal de prosperidade e integração global, também trouxe consigo um senso de deslocamento e desassociação, principalmente para os jovens que buscavam construir suas identidades. Ao colocar o título da faixa como Uma Pessoa Pura, Lim Giong não estava apenas batizando a trilha sem motivos aparentes. Na trama, acompanhamos Vicky sendo uma jovem que está, praticamente, à deriva. Envolvida em um relacionamento abusivo e controlador, trabalhando em boates e passando noites embebida em angústia, o conceito de pureza para a personagem não está no significado literal da palavra.
Para Vicky, ele vai além da moralidade ou pureza física. A verdadeira pessoa pura, no caso, está relacionada às expectativas e ingenuidades que os jovens possuem, especialmente quando o aguardado ano 2000 começou. Não é sobre pureza no sentido convencional, mas sim sobre as promessas de um futuro melhor, uma esperança que se manifesta nas aspirações de uma geração. No contexto de Millennium Mambo (2001), a "pureza" é o reflexo da juventude à beira de um novo milênio, cheia de possibilidades, mas também marcada pela incerteza e pela busca por identidade em um cenário globalizado e em rápida transformação. Lim Giong, com sua música etérea, imprime esse otimismo disfarçado de angústia. A faixa não sugere que Vicky seja pura, mas sim que ela carrega a ilusão de um futuro ainda por se concretizar, e isso torna-se o verdadeiro cerne para compreender o impacto da trilha sonora na abertura do longa.
Os jovens que assistem ao filme podem, e irão, se identificar e sentir uma conexão que muitas vezes não será possível entender ao início, justamente porque, assim como Vicky, todos somos pessoas puras, em busca de uma identidade que se fragmenta a cada dia diante das rápidas transformações do mundo. E também em busca daquilo que nos faça pertencer a algum lugar, a alguém, ou até mesmo a nós mesmos.
善良 Gentileza
平凡 Normalidade
快樂 Felicidade
單純的人 Uma pessoa pura
每次一看到 Toda vez que eu vejo
平凡善良的人 Pessoas gentis normais
心裡就感觉 Meu coração sente
平静快樂 Alegria serena
(Lim Giong, A Pure Person, Millennium Mambo Original Soundtrack)
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