A trilha que guia e ecoa emoções
- Clara Oliveira
- 29 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de mai.
Hans Zimmer transforma a música em peça fundamental das narrativas, criando trilhas que se tornam personagens na experiência cinematográfica
Por Clara Oliveira

No espaço, ninguém pode ouvir você gritar, mas Hans Zimmer fez questão de preencher as caixas de som dos cinemas. Em Interestelar (2014), enquanto Matthew McConaughey pilota uma nave rumo ao desconhecido, as notas do órgão de tubos preenchem e dão o tom de um vazio cósmico com aura quase espiritual. Esse não é um caso isolado: nas últimas quatro décadas, Zimmer moldou as faixas sonoras de Hollywood com trilhas que não apenas acompanham as imagens, mas comandam a emoção e as expectativas do espectador. Isso o consagrou como um arquiteto de atmosferas e um “rockstar” da sétima arte.
Há quem acredite nunca ter ouvido um trabalho do compositor alemão Hans Zimmer. A grande verdade, porém, é que ele está muito mais presente do que se imagina. De O Rei Leão a Duna, passando por animações, dramas históricos, thrillers e ficções científicas, Zimmer construiu algumas das trilhas mais complexas e emblemáticas do cinema moderno. Em muitos casos, seu trabalho transcende o papel de fundo musical e se integra como um personagem nas narrativas, moldando emoções, conduzindo cenas e, por vezes, ditando o tom das histórias antes mesmo que as imagens o façam.
Para entender como um músico alemão revolucionou a indústria da sétima arte, é importante compreender o contexto no qual ele foi inserido. Hans Florian Zimmer nasceu em Frankfurt, no dia 12 de setembro de 1957. Por isso, não surpreende o fato de que o primeiro instrumento no qual o compositor teve contato foi o piano, já que a Alemanha é berço de importantes tradições pianísticas da história da música ocidental. De Beethoven a Brahms, passando por Schumann e Mendelssohn, o piano foi por séculos o instrumento íntimo das casas alemãs e, ao mesmo tempo, protagonista dos grandes palcos.
Entretanto, Zimmer já não era um grande apreciador do “convencional”. As aulas de piano que frequentou na infância duraram pouco tempo e ele logo se reconheceu como autodidata, já que interessava-se mais pelos sons que podia descobrir do que pelas regras que deveria seguir. Essa postura inquieta e experimental molda toda a sua trajetória e estilo, conduzindo-o da música clássica para as bandas de garagem, dos sintetizadores para os estúdios de cinema, e, por fim, ao posto de um dos mais inovadores compositores da história.
O caso Interestelar
Apesar de não ter levado a estatueta no Oscar de 2015, mesmo sendo indicado, um bom exemplo da genialidade musical e o poder de conexão das trilhas sonoras com um enredo ocorre no filme Interestelar, dirigido por Nolan. Para criar a atmosfera sonora do espaço e conduzir as emoções desejadas ao público, Zimmer recorreu ao instrumento já conhecido e amado por sua terra, o órgão de tubos. Dom Ezequiel Pereira, organista e doutorando em música, explica que “o órgão, pelas suas características sonoras, sempre foi considerado o rei dos instrumentos musicais", já que, nos primórdios do cinema mudo, era comum que salas exibissem filmes acompanhados ao vivo por pianistas ou organistas, aproveitando a força emocional e narrativa desses sons.
Zimmer rompe com a tradição de apenas utilizar o instrumento em filmes com cunho religioso em Interestelar. As notas prolongadas e os acordes dissonantes do órgão preenchem as cenas com uma ideia de infinitude, espiritualidade e também melancolia. Como aponta Dom Ezequiel, “no período romântico, surgiram registros de órgão que buscavam exprimir o som da eternidade. Esse efeito contemplativo e ultraterreno produz exatamente o impacto que o compositor desejava provocar”.
O organista aponta ainda que parte das características da trilha que intriga tantos espectadores é claramente inspirada nas técnicas da arte impressionista do final do período romântico francês. “Há acordes e registros que lembram a música organística francesa do início do século XX, assim como o estilo de basso ostinato e, em alguns casos, o clássico estilo de toccata francesa, aqueles acordes ritmicamente rebatidos acompanhados de uma melodia grave na pedaleira”.
Não é apenas o órgão que constrói esse efeito etéreo e quase místico no filme. A genialidade de Zimmer está, sobretudo, na maneira como ele mistura o sagrado e o moderno. A combinação entre o órgão, sons de orquestra e camadas de sintetizadores representa bem a personalidade inquieta e experimental do compositor. Como explica o jornalista e crítico de cinema Matheus Pannebecker: “Esse desprendimento acaba refletido na sua carreira e no próprio estilo construído como compositor ao longo dos anos. Zimmer se adapta às novas tecnologias e as abraça sem medo algum, por isso é, ao meu ver, tão difícil defini-lo, no bom sentido. Estamos falando de um profissional que se reinventa e está sempre aberto ao novo. É por isso que ele tem um perfil camaleônico.”
Embora o uso do órgão no cinema tenha diminuído com o passar dos anos, seu retorno, como visto em Interestelar, é uma reminiscência da tradição histórica do cinema e da música. Dom Ezequiel Pereira acredita que seria importante que o órgão pudesse retornar às artes contemporâneas, considerando sua vasta possibilidade sonora e dinâmica musical. Ele observa que, “no mundo moderno, o órgão foi muitas vezes reduzido a um ambiente litúrgico, mas seu efeito emocional pode ser perfeitamente aproveitado em um cenário cinematográfico mais acessível ao grande público”.
Uma experiência complementar
Hans Zimmer compreende, como poucos, que a música no cinema não existe apenas para ilustrar ou reforçar a imagem, mas para dialogar com ela e potencializar sua carga emocional. Ela precisa existir como um elemento invisível, mas determinante, capaz de moldar a percepção do espectador sem que este perceba conscientemente sua presença. Como descreve Matheus Pannebecker: “A boa trilha sonora é sempre assim: não sei se ela subverte ou transforma a forma como o público enxerga uma cena, mas a potencializa, sempre de maneira agregadora e sem nunca parecer um elemento à parte”.
Esse poder de transformação que Zimmer exerce sobre a experiência cinematográfica não é um acidente, mas sim uma escolha artística intencional. Como Pannebecker afirma, "trilhas precisam fazer coisas inesperadas, provocar, dar uma invertida no que o público tradicionalmente espera de uma história ou de um personagem". Por isso, Zimmer tem uma abordagem considerada ousada para a composição, muitas vezes subvertendo expectativas e regendo como um mestre as sensações do público.
O alemão é um dos muitos exemplos de como a música pode ser usada para isso, mas o que o torna excepcional é sua habilidade de romper com as expectativas e explorar novas formas de conectar sons à narrativa visual. A trilha sonora não é apenas um detalhe técnico ou um simples adorno. Ela é uma parte vital da história que é responsável por revelar o que a fotografia não pode expressar sozinha e pode ser considerada a ponte invisível entre o que vemos, o que sentimos e o que iremos sentir.
* Esta imagem é utilizada exclusivamente para fins jornalísticos e ilustrativos, respeitando as disposições da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998, Art. 46), sem fins comerciais e com os devidos créditos ao autor e veículo de publicação original.
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